Peço licença para contar uma história que ouvi enquanto viajava de ônibus numa noite chuvosa do verão de 2008. Se é verídica, eu não sei. Só sei que dos fatos não omitirei nenhum detalhe; quanto aos nomes, sim, em respeito aos parentes das vítimas...
Antes de tudo, cabe ponderar que há modismos para quase tudo neste mundo. E dentre estas modas e bossas, houve uma recente “guerra fria” declarada ao gerúndio (uma das formas nominais do verbo, formada pela desinência "ndo", que indica a continuidade de uma ação).
Revoltados com os atendimentos de SAC e call center, alguns ortodoxos patrocinaram uma verdadeira “caça às bruxas”, ou melhor, “caça às atendentes de telemarketing viciadas em conjugar verbos no futuro, acrescidos de gerúndio”: “vou ‘estar passando’ a reclamação para o setor responsável...”.
Mas cá entre nós: é preferível que a atendente “esteja passando” realmente a sua reclamação para o setor responsável e “resolvendo”, do que “engavetando”, como fazem certas autoridades diante de denúncias contra chegados seus...
Fato é que não há crime na utilização do gerúndio. O problema é o gerundismo, que acabou por banalizar uma forma nominal tão necessária quanto o ar que respiramos. Mas ainda que inapropriado em alguns tempos verbais, eu não tenho a pretensão de ser o carrasco de quem o pratique na forma falada. Na escrita, porém, é que se deve tomar cuidado. Por isso, não ousarei a atirar a primeira pedra. Talvez, “estarei atirando” a segunda...
O pior dos modismos ocorre quando político se mete a criar moda. Em 2007, o então governador do Distrito Federal assinou um decreto no mínimo surrealista: “Fica demitido o gerúndio de todos os órgãos do Distrito Federal”. A justificativa: acabar com a típica burocracia dos governos, que se valem do gerúndio para “desculpa de suas ineficiências”. Como que num passe de mágica, revoga-se a nossa burocracia quinquentenária, exterminando a sua causa: o gerúndio...!
Feito este prefácio, passarei ao epílogo da história propriamente dita.
Viajava eu no último Setelagoano, de BH à Paraopeba, via Caetanópolis, quando ouço dois senhores, nas poltronas de trás, confabularem sobre um fato ocorrido em Brasília, em que um deles foi o protagonista (apresentarei a versão adaptada, com exageros, é claro, senão não teria graça!):
Dois porteiros do estacionamento do Governo do Distrito Federal, em troca de turno, comentam o decreto do governador candango que “demitira o gerúndio”. Ainda que ambos tenham a noção do que se trata o ato governamental, eles, como todos os porteiros e guardas de banco, que detêm o poder supremo de igualar os iguais e desiguais, aproveitam o mote para fazer uma chacota com um humilde faxineiro que se encontra ao derredor:
“Ô, mineirinho, fica esperto! O governador ‘tá’ mandando embora até gente concursada... Hoje ele ‘correu’ com o ‘Gerúndio do almoxarifado’!”
O faxineiro, sem interromper o vaivém de sua vassoura desgastada de bruxa medieval, responde mansamente:
“Se eu fosse o ‘guvernadô’, eu ‘num taria mexeno’ com o homem do almoxarifado, não...”
Após uma breve pausa, sussurra:
“Uai... Dizem até que ele é ‘feiticero’!”
Com as suas gargalhadas escarnecedoras, os porteiros lembram uma revoada de maritacas...
* * *
O tempo passou e com ele as dores do mundo. E não é que aquele faxineiro tinha razão: o governador cairia em 2010, por, ironicamente, praticar o que outrora combatera: “ ‘estar levando’ dinheiro nas meias”...
* Crônica publicada na Folha de Paraopeba, edição de janeiro de 2012.
Sobre o Autor:
![]() | Harley Coqueiro - um cara da paz, iluminista, evangélico não fundamentalista, pai do Ulisses e do Dante. Já desenhou charges, escreveu poemas e compôs canções gospel. Tem como pecados, gostar em excesso de rock'n'roll, filmes e comida! |
5 comentários :
Quase o mesmo pensamento. Se der, gostaria que lesse este texto sobre o gerúndio: O gerúndio está sangrando (http://www.recantodasletras.com.br/gramatica/3470784)
13 de fevereiro de 2012 às 17:19@Eduardo C. Gomes Li o seu "post" e embora o enfoque seja diferente, a sua abordagem sobre o tema, também é muito interessante!
14 de fevereiro de 2012 às 09:43Coqueiro, o gerundismo é notadamente prejudicial ao estilo tanto quanto qualquer outro vício de linguagem. O gerúndio, por outro lado, é uma forma nominal característica do português falado no Brasil (em Portugal e na África lusófona há uma nítida preferência pelo infinitivo como forma nominal em tempos compostos e locuções). Valei pela abordagem do tema, sempre controverso!...
15 de fevereiro de 2012 às 13:07Hi,
27 de fevereiro de 2012 às 10:38Muito bom o texto amigo Harley Coqueiro!
É pena que 'a lei' não tenha dado certo, né?
[]'s Inácio Rolim
@Inácio Rolim KkKkK! Uma pena, mesmo, Inácio Rolim!
27 de fevereiro de 2012 às 11:35Valeu!!!
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