Antes de tudo, me perdoem pelo trocadilho para lá de infame. Não é intenção deste escriba, fazer piadas com uma norma tão relevante quanto a Lei Maria da Penha. Mas vocês verão que existe uma razão para tal.
Em agosto, completam dois anos da sanção presidencial da Lei Federal nº 11.340/2006. A denominada Lei Maria da Penha que ganhou esse nome graças à cidadã Maria da Penha Maia (uma farmacêutica bioquímica que ficou paraplégica ao receber um tiro do marido, e precisou de quase duas décadas e repercussão internacional do caso para se punir o agressor), objetiva, em síntese, coibir a violência doméstica e familiar.
Propalada aos quatro ventos como uma lei que representa um avanço na legislação brasileira, por proteger as mulheres vítimas da violência doméstica, trouxe em seu bojo algumas inovações, dentre elas a impossibilidade da vítima retirar a queixa de agressão, a menos que tal procedimento seja feito perante o juiz, em audiência marcada exclusivamente para este fim.
Atualmente, a sua constitucionalidade vem sendo questionada por alguns juristas que são da corrente contrária à distinção de tratamento entre homens e mulheres em relação à violência. A advogada e professora da USP, Eunice Prudente, defensora da Lei Maria da Penha, diz que as estatísticas demonstram que é a mulher quem deve ser protegida. E disso quase não há discordância: em regra, são as mulheres as vítimas da violência doméstica.
As boas intenções e discussões plenárias resultaram em avanços trazidos pela Lei Maria da Penha, entre eles:
● a definição do que é violência doméstica, incluindo não apenas as agressões físicas e sexuais, como também as psicológicas, morais e patrimoniais;
● reforça que todas as mulheres, independentemente de sua orientação sexual são protegidas e enquadradas pela lei, o que significa que mulheres também podem ser punidas como agressoras;
● não há mais a alternativa dos agressores pagarem a pena somente com cestas básicas ou multas. A pena é de três meses a três anos de prisão e pode ser aumentada em 1/3 se a violência for cometida contra mulheres com deficiência;
● ao contrário do que acontecia antigamente, não é mais a mulher quem entrega a intimação judicial ao agressor;
● a vítima é informada sobre todo o processo que envolve o agressor, especialmente sobre as suas prisão e soltura;
● a mulher deve estar acompanhada por advogado e tem direito ao defensor público, caso não tenha condições de constituir um advogado;
● podem ser concedidas medidas de proteção como a suspensão do porte de armas do agressor, o afastamento do lar e uma distância mínima em relação à vítima e aos filhos;
● permite prisão em flagrante;
● no inquérito policial constam os depoimentos da vítima, do agressor, de testemunhas, além das provas da agressão;
● a prisão preventiva pode ser decretada se houver riscos de a mulher ser novamente agredida;
● o agressor é obrigado a comparecer aos programas de recuperação e reeducação.
Reconhece-se que esta Lei toca em temas complexos e em tabus da sociedade que é a fragilidade de mulheres, em sua maioria pobres, de pouca instrução e, como os seus filhos, dependentes economicamente de seus companheiros. Entretanto, ainda não pude testemunhar a eficácia desta Lei, da mesma forma que na aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/90) ou no Estatuto do Idoso (Lei Federal nº 10.741/2003), que ainda que possam apresentar eventuais imperfeições, são legislações mais coercitivas para quem as descumpre. No fim, fica a impressão de que neste país, crianças e idosos ainda têm mais valor que as mulheres...
O que a sociedade está assistindo na mídia são inúmeras situações em que mulheres agredidas fazem inúmeros boletins de ocorrência e pedidos de providências, para no fim terminarem assassinadas (vide o caso da manicure mineira), numa afronta descarada à Lei, comprovando a completa falta de medidas protetivas de urgência mais eficazes.
E é aí que eu questiono a eficácia do diploma legal em questão e do risco que corre em cair no descrédito da população. Constata-se que está faltando uma atuação mais efetiva por parte dos agentes públicos, em geral, e do Ministério Público, em particular, no cumprimento da Lei Maria da Penha, tal como dispensada para crianças, adolescentes e idosos.
Logicamente que, por outro lado, ainda que a Humanidade tenha avançado tanto desde o “Código de Hamurabi”, é triste saber que é necessária uma lei para coagir e punir valentões que gostam de bater em mulher.
Entrando no seio familiar, eu costumo dizer que para um relacionamento se manter nos limites da dignidade, é necessário haver acima de tudo, o respeito mútuo, ainda que o amor tenha esfriado. É piegas? Parece a recomendação maçante de algum pseudo-terapeuta de casais? Sim, mas um lar sem paz corresponde a um cativeiro, onde apenas há prantos e ranger de dentes.
Entretanto, uma vez que para a vergonha do Macho brasilis, se tornou necessária a criação da Lei Maria da Penha, que ela saia da retórica e seja no mínimo respeitada por todos, como devem ser todas as mulheres e todos os indivíduos.
Sobre o Autor:
Harley Coqueiro - um cara da paz, iluminista, evangélico não fundamentalista, pai do Ulisses e do Dante. Já desenhou charges, escreveu poemas e compôs canções gospel. Tem como pecados, gostar em excesso de rock'n'roll, filmes e comida! |
10 comentários :
Hi, Harley...
22 de março de 2010 às 09:37Assino onde, em concordância com seu post?
Mas é uma pena termos que criar uma lei específica, para garantir às mulheres um mínimo de respeito!
[]'s @inaciorolim
Post muito informativo e isso é ótimo numa época em que as informações são escondidas para que não busquemos nossos direitos. Importante divulgar, principalmente, entre as classes menos abastadas, pois é ali que as mulheres convivem com maridos bêbados, desempregados, violentos e que acreditam que a mulher é propriedade.
22 de março de 2010 às 09:41P.s.: o goleiro Bruno do Flamengo precisa ler este post.
Inácio Rolim,
22 de março de 2010 às 10:33É como eu escrevi: o pior de tudo é termos uma lei específica para freiar os instintos de certos camaradas...
Bauru,
É isso mesmo: não temos nada contra a lei em si, mas contra a sua ineficácia.
E sobre o Bruno: KkKkKkKkK...!
Brilhante, Doutor Coqueiro!
22 de março de 2010 às 10:53De fato, é preponderante o respeito mútuo em qualquer relação social, especialmente no casamento, onde o pressuposto é haver pessoas que se amam. E aquela história de que "ele é bruto só quando bebe, mas sóbrio é um excelente marido e pai" não existe. Quando há respeito de verdade pela esposa e pela família, o cidadão que tem a terrível doença do alcoolismo (ou qualquer outra dependência) procura ajuda para curar-se. A mulher precisa saber lidar com isso: amar-se mais, vencer o medo da solidão, de criar seus filhos sem um marido (se é que podemos chamar assim um brutamontes capaz de agredir a esposa), de voltar ao mercado de trabalho, se ela o abandonou pela família.
Por outro lado, o homem precisa entender que a violência nunca foi e nunca será a melhor maneira de resolver conflitos. Principalmente quando essa violência é uma covardia.
Dura lex sed lex. Precisamos fazer valer de fato as leis no Brasil!
EDN,
22 de março de 2010 às 13:36A ideia é essa mesmo. Se fizeram a lei, tem de zelar pelo seu cumprimento, sob pena de cair em descrédito e se tornar uma "lei que não pegou".
Creio que a lei deveria ser mais abrangente e abrir um leque claro e evidente para proteção da família, ser vista como protecao para mulher, para os filhos e porque não para o próprio marido. Assim, seria evitado os questionamentosde inconstitucionalidade da lei e ainda estabeleceriamos possibilidades mais justas.
23 de março de 2010 às 10:26A regra nem sempre é absoluta e é preciso prever exceções para que as exceções nao constituam injustiças.
Eu tenho a tendência a interpretar a legislação de forma mais aberta, mas sabemos que o direito penal deve ser levado estritamente (pena, tipo...), sob pena da justiça penal se tornar a perseguição penal...
Dr. Hugo Meira,
23 de março de 2010 às 11:54Eu também sou da corrente da interpretação mais abrangente da Lei Penal, como bem explanado em seu comentário.
No caso em questão, além do alegado vício de inconstitucionalidade, há a ineficiência estatatal para o cumprimento da norma, resultando em eventos trágicos, fins opostos ao da Lei.
Cara Harley,
6 de julho de 2010 às 13:13Parabéns pelo texto. Sempre brilhante. Bem, a meu ver, sou um tanto cética quanto às leis, não deveria existir nenhuma Lei específica para cada caso e sim reeducação. Não é pq a Lei existe que como vc mesmo citou, os valentões deixarão de bater. Só param quando matam ou morrem.
Falo isso, pq lembro da minha infância, que o pai da uma amiga querida minha, depois de ter sido preso inúmeras vezes por agressão contra a mãe dela, só parou quando matou a mesma. E foi pra cadeia, cumpriu a pena e quando saiu, anos depois, espancou a nova mulher que arrumou. O problema não são as Leis e sim os humanos.
Devemos lembrar tb de maridos que apanham de esposas. Sim! Isso existem, e são muitos, mas assim como as mulheres (mas por motivos diferentes) não falam, ambos por vergonha. Elas por que se acham culpadas e eles por que não sabem como se comportar perante amigos, familiares e a sociedade machista, que irá criticá-lo por apanhar de uma mulher.
Lembro de um caso nos EUA onde um homem quase foi para cadeia por quase matar a esposa. E só descobriram que não foi uma tentativa de homicídio, pq a filha deles, na época com 9 anos, perguntou ao policial se a mãe dela iria ficar 'de castigo' por ter batido no 'papai'. Aí descobriram que na verdade a mulher caiu sobre a tal mesa de mau jeito, em uma das tentativas de agredir novamente o marido. O que vinha ocorrendo nos útltimos 7 anos de casamento. Socos e pontapé matutinos eram coisas normais na casa. Mas vindo dela, e não dele.
Por isso, não acho que Leis de Marias, Josés e Joãos irão resolver o problema. O que irá resolver é a reeducação, é a mudança da mentalidade patriarcal que ainda reina em nossa sociedade partenalista. Pois até nosso feminismo é machista.
Beijos!
@anamagal
Ana Magal,
6 de julho de 2010 às 17:51Obrigado pelo seu comentário, que enriqueceu ainda mais o "post".
o que a capa do livro diz tem duplo sentido
17 de agosto de 2010 às 13:21Postar um comentário
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